O JARDIM

Eu uma vez amei. Havia uma mulher nessa história. Chamava-se Anjo.
Anjo era louca. Quase como eu.
Queria ser princesa, rainha de um amor eterno, e por isso andava sempre a tentar escapar-se para outro mundo: um território algures, reino ou palácio de encantos secretos que nem mesmo ela era capaz de dizer como eram.
As outras pessoas aproveitam-se dessa distracção. Abusavam dela. Ou então ficavam embaraçados em liberdade, de repente ignorantes de como comunicar; punham-se a dizer umas para as outras: “Anjo é muito confusa”, ou: “Anjo é muito ingénua”.
Com o tempo, que é o que dá o conhecimento aos que o procuram, vim a perceber que Anjo não seria capaz, nunca, de fugir para lado nenhum: esta terra, este chão rodeado de céu, era aqui que ela queria achar (ou inventar) o seu paraíso. Nisso é que as nossas loucuras individuais se tocavam, porque idênticas, e assim nos entendíamos, embora eu tivesse mais sentimentos, e ela ocultasse menos os seus.

Tínhamo-nos conhecido mais de perto numa festa particular, por causa de umas garrafas de bebidas alcoólicas. Ela não gostava do cheiro, mas o tempo está sempre em movimento, e começou a gostar da história, porque eu lhe disse: “É da relação entre a passagem do tempo e a efemeridade do homem que nasce a moral”.
Mal ela sabia como a moral me fazia amargo, descrente.

Um dia, algum tempo depois, fomos passear. Andámos ao acaso pelas ruas da cidade. Era o meio da tarde. O céu estava cinzento, mas claro, e, de vez em quando, o vento (um pouco de vento) roçava por nós, a planar.
Sentámo-nos na esplanada de um café que ficava numa rua por trás de um enorme jardim.
Estávamos a ver as árvores, estávamos a ver, e eu disse: “tudo isto há-de passar”.
Não tínhamos dormido bem na noite anterior, e sentíamo-nos pesados, tristes, talvez em consonância com a cor do dia a esvair-se. Eu estava a beber água, e ela cerveja. Trocámos as bebidas, porque a cerveja continuava a não lhe dar prazer.
Reparei que o verde do jardim parecia estar a querer dizer-nos alguma coisa. Propus passarmos por lá. Fomos.

A partir daí, escapávamo-nos para lá sempre que podíamos.
A princípio, tudo era descobrir, e por isso estávamos sós. Quer dizer: quase não víamos ninguém, ou o nosso olhar, de tão debruçado no nosso sentir, fazia com que até a mais densa opacidade se tornasse transparência.
Dizendo tudo, tínhamos encontrado um palco para ensaiar a perfeição: havia construções em metal escuro e vidro a sair harmoniosamente da relva, pequenos lagos com vegetação flutuante, patos e cisnes, rãs, peixes; havia estátuas, súbitos riachos cruzados por pontes de brincar, encostas suaves onde vicejavam árvores com o seu nome latino inscrito junto aos pés; havia até um anfiteatro, onde músicos e actores vinham, nas noites quente, mostrar que as realizações dos homens no tempo não obedeciam às linhas rectas nem da geometria nem dos sentimentos.

Era isto antes do verão, e o verão passou, e o outono, e o inverno, e veio a primavera. Mas o nosso fascínio pelo jardim não esmorecia, porque nele, todas as estações podiam ser evocadas, fosse em que momento fosse.
Conhecíamo-nos agora muito melhor, e já passávamos muito menos tempo de olhos perdidos nos olhos um do outro. Recomeçávamos a ver.
O jardim cresceu.

Cresceu tanto e com tantas formas que nos perdemos nele — perdidos mesmo quando de lá saíamos, para darmos resposta às nossas vidas obrigatórias. Vidas alheias. Era um jardim tão fabuloso que conseguira lançar raízes dentro de nós; e aí sim, dava-se o seu verdadeiro crescimento.
Eu não perdia Anjo de vista, ela sabia sempre onde eu estava. Mas algo, em tudo aquilo, começava a tomar ares ameaçadores. Nasceram as primeiras discórdias grandes, feitas de nadas.
“Caminhemos de mãos dadas pelos atalhos mágicos, sempre que sol descer à terra através da folhagem”, sussurrava-me Anjo, nas suas ânsias de amor puro. Eu explicava-lhe que as nossas mãos estavam sempre dadas, mesmo que não estivessem, e que não era só o sol que me convidava para as aventuras do prazer: havia tanto os beijos como as mordeduras, tanto a luz como a escuridão, a liberdade como o cativeiro.
Havia o medo, havia a seiva a correr no interior das plantas (e nós não a víamos), havia a nossa inteligência, a nossa ingenuidade e a nossa curiosidade. O jardim era demasiado bom para ser simples, ou o contrário. Irmã do prazer era a dor.
“Tenho sono”, dizia Anjo, assim que anoitecia.
Comecei a sentir frio. Via-a dormir, mas o sono, a mim, não me visitava. Quem rondava os meus sonhos era a morte.


Um dia, pela primeira vez, fui ao jardim sozinho. Absolutamente sozinho: as minhas mãos iam comigo. A sensação era estranha, mas não desagradável. Pareceu-me até que respirava melhor.

Fui outras vezes, e falei a Anjo das minhas soluções solitárias.
Vi o nosso desentendimento aumentar. Mas porquê? Que estava eu a fazer de errado em nós? Pois não era verdade que possuíamos um
paraíso? Não era verdade que podíamos ser felizes?
Quando o vento passava com um certo odor, Anjo parecia que mudava, e mostrava-se capaz de me escutar — e, ao escutar-me, entender-me. Mas era vento de pouca dura, e depressa voltávamos à cegueira: tão estúpida e tão viciada que já não pertencia realmente a nenhum de nós.

Uma tarde, no jardim, tive a visão de um deserto, atravessado por uma longa estrada. A estrada desapareceu, e ficou só o sol e a areia. Fiquei a pensar em quem é que poderia passar por ali.
Depois, uma noite, pareceu-me ver um vulto. Era um vulto. Estava imóvel. Aproximei-me dele. Afinal, tratava-se apenas de uma estátua. Se as estátuas andassem, atravessariam elas um deserto? Pareceram-me ser os seres ideais para o fazer.
Noutro dia ainda, estava eu algures, fora do jardim, quando me pus a olhar para as pessoas: vi os gestos que faziam, ouvi as coisas que diziam; percebi algumas coisas que se ocultavam por trás de tudo isso. Era uma altura em que me sentia cansado, confuso, vazio. De repente, tudo parou: os objectos, o ar, a luz, os seres. Tudo era bem visível: só havia estátuas. Imaginei toda aquela gente (eram os humanos que mais me interessavam) em silhueta, e vi-me transportado para o jardim. Pela primeira vez, pareceu-me estar a compreendê-lo, tal como era, para lá de quaisquer aparências.
Senti-me eufórico, rejuvenescido. Corri ao encontro de Anjo, para lhe contar das minhas descobertas. Recebeu-me com indiferença. “A vida é nada mais que as pequenas coisas”, disse ela.
Era? Não. Claro que não.
“A vida”, disse eu, “são as pequenas coisas, as grandes coisas, todas as coisas”.
“Tenho sono”, disse ela.
Sorri. Beijei-a. “Dorme bem”, murmurei-lhe ao ouvido. “Vou ainda passear um pouco”.

Regressei ao jardim. Febril, obcecado mesmo, comecei a fazer o desenho concreto do meu entendimento daquelas figuras em pedra. Não era preciso desenhar muitas: algumas seriam os sinais da pedra em mim, outras as das pedras mortas, outras ainda as das pedras nobres.
Estava em casa cada vez menos. Anjo começou a chamar-me “o estranho familiar”. Respondia-lhe com o silêncio: no fundo, eu podia chamar-lhe o mesmo.
As figuras iam-me saindo cada vez mais perfeitas. Tinha de as mostrar a alguém, porque alguém tinha de saber. O jardim tinha de ser destruído. Era preciso construir outro.

Um dia, cheguei a casa e Anjo não estava. Imaginei a estátua dela. Era uma estátua que falava. Dizia-me: “estamos condenados à vida na morte eterna; já nada disto faz sentido; estou longe; não voltes mais ao jardim: eu estarei lá”.
Senti alguma coisa a doer-me: uma dor má, mole, cheia de tempo.
Ela não estava no jardim, mas na
aparência do jardim. Não cheguei a lá ir, para confirmar: era algo tão certo para mim como era certo eu não poder salvá-la. Não havia salvação para ninguém.
Anjo rendera-se à aparência para ser feliz. (De mim, uma recordação; mas sabe-se lá qual...)
Eu saltara o muro para ser eu. A felicidade era o melhor de tudo, mas não me cabia nas mãos.
Deixei-lhe um bilhete que dizia assim:
“Hei-de voltar para expulsar do paraíso o jardim das tabuletas em latim”.
A felicidade começava a tomar, em mim, um aspecto totalmente diferente daquele que eu via andar à solta pelas ruas: o aspecto que sempre tivera, nos meus sonhos, e que eu andava, injustamente, a recusar.
Ia já a sair quando me lembrei de uma coisa. Voltei atrás e acrescentei um P.S. ao bilhete:
“Toda a gente sabe que os anjos moram no céu”.
O céu pertencia-me. Eu estava na terra.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Que maravilha de conto!!!
Eu também já escrevi um conto com anjo...ta guardado no fundo de uma gaveta.
Parabéns, fiquei encantada.

7:17 da tarde  

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