O COWBOY
Talvez tudo tenha começado com o cimento.
O país não tinha desertos grandes (a não ser os do espírito), e o mar era costeiro, mais para olhar.
Havia então aquele pó doente (o cimento), que construía cidades.
Talvez tudo tenha começado também com o frio, o vento de gelo que soprava entre as paredes de cimento — o vento das paredes seguintes, de vidro feitas — o ar de lâminas de certas paredes em metal polido e brilhante.
Assim, à imagem das suas construções se fez o homem: em superfície.
Fez-se cowboy, austera figura de solidão — apesar do tempo que havia de (que há-de) vir, quente e acolhedor. (Mas os homens não mudam: adaptam-se às aparências. Para quê, então, negar ou mascarar a sua verdadeira natureza?)
Poder-se-ia, no entanto, falar de alegria, ou de amor. Mas um é o tempo das sementeiras, outro o tempo de ver crescer o que se semeou, e outro ainda o tempo das colheitas. (Como o amor, pois, se nem sequer o ódio ele conhecia?)
Inúteis questões. Porque assumindo-se cowboy, deixava ao tempo o problema das decisões.


— Que calça ele?
— Botas de cabedal, bicudas, de meio cano. Sem esporas: um carro é o seu cavalo, não há que esporear.
— Define-o.
— É aquele tipo com aquele modo de andar: oscilante, a insinuar-se. Usa calças de ganga justas, e um cinto em couro, com fivela pesada, pequena, prateada. Ou calças pretas, fivela dourada num cinto mais fino e mais escuro.
— Uma cor geral.
— O cinzento.
— Porquê?
— O pó.
— O cimento?

Caminhou ao longo da estrada, quando a tarde já se aproximava do fim.
Passou por um bar. Estava aberto. Entrou. Encostou-se ao balcão e pediu uma bebida.
Um velho perguntou-lhe as horas.
Ele olhou-o, devagar.
— Não sei — disse.
Bebeu, pagou e saiu.
Continuou a caminhar ao longo da estrada.


— Usa chapéu?
— Às vezes. Puxa-o para os olhos, a ruminar um palito, ou a ponta de uma erva seca.
— Estás a vê-lo?
— Estou. Está sentado.
— Como é ele?
— Não é alto nem baixo, gordo nem magro. Feito de uma fibra feita para durar.
— É duro?

As sensações de chegada e de partida tornaram-se-lhe familiares. Não tem sítio próprio: a solidez das casas instalou-se-lhe na pele. E não cuida de vacas: é um cowboy moderno.
Nele, enfim, perdem sentido os homens de papel. E se ainda ouve os coiotes, se ainda desperta ecos de som e luz na pradaria, com a sua harmónica (uma guitarra, de facto) e a sua fogueira de aquecer o café e os pés, é porque abriga um homem ancestral, debaixo da superfície que pura lhe nasceu.
A verdade das aparências é ainda uma aparência.


Erecto perante o sol a pôr-se, na cidade-fantasma.
— Esperas alguém? — pergunta-lhe uma das raparigas do salloon.
— Espero o meu cavalo.
Um carro passa na estrada em frente, veloz, a levantar nuvens de poeira.
— És um imbecil, cowboy — diz-lhe a rapariga, voltando-lhe as costas.
“Sou uma sombra”, pensa o cowboy.
Não está à espera de nada, nem de ninguém, mas a ver-se perante o sol. Não há solidão maior que a sua, nem dureza mais gélida que a do seu olhar.
E, contudo, sabe que nunca quis ser injusto.


— Fuma?
— Às vezes: cigarrilhas de tabaco escuro, ou cigarros enrolados à mão. Enrola-os devagar. Cospe para o lado. Acende um fósforo, acende o cigarro que acaba de fazer, puxa uma primeira e espessa baforada de fumo acre.
— E bebe?
— Às vezes: a saborear. Às vezes para se embriagar. Às vezes não.
— Define-o.
— Blusão de cabedal ou gabardina, consoante a temperatura, por dentro e por fora. De gestos lento, mas atento sempre, para quando é preciso que seja rápido, que também sabe sê-lo: tem longo treino das armas naturais, praticamente invisíveis.
— O olhar?

Chegou, pediu quarto, duche, jantar, roupa lavada.
Mais tarde, já com novo aspecto, foi até ao salloon da cidade, o maior de todos em milhas de deserto.
Não jogou às cartas. Não ligou às mulheres. Não falou.
Limitou-se a beber e a olhar.
Viu tudo o que lhe apeteceu e depois foi-se embora.
Foi-se deitar.
Estava cansado: adormeceu quase logo.



— O que faz um cowboy na vida?
— Qualquer coisa. Nada. Vive.
— Tem um mundo triste, o cowboy.
— Tem o mundo dele. Não o impõe a ninguém.
— E está sempre sozinho?
— Sempre. Mesmo que esteja com alguém. No fundo, também tem sonhos, ilusões: quer enriquecer depressa, para depois ir morrer devagar, num sítio longe onde não o aborreçam.
— Mas ele aborrece-se?
— Mais do que qualquer outro ser. Talvez por causa do cimento, do mundo frio das paredes.
— O que é que o faria feliz?
— Feliz?

Só quando dorme é feliz: os sonhos, incontrolados, apossam-se dele, e ele deixa-se ir.
E o que sonha é isto, muitas vezes:


Saca a arma do coldre,
veloz como um relâmpago,
e dispara contra a garrafa
de vidro verde, que se estilhaça
em mil pedaços.
Sorri. Está feliz. Foi bom a
disparar.
A garrafa a estilhaçar-se,
vê-a como sendo a sua vida,
que nesse tiro passou.
Agora, só lhe resta morrer.

Depois acorda.
Está no quarto alugado.
O sonho ainda por fazer.

4 Comments:

Blogger la machina said...

Não há nada de inacabado aqui. Cada texto junta-se ao anterior, como num puzzle, e a imagem a conseguir, a imagem completa, só fará sentido no fim.
Será ainda de partir de dois princípios na leitura: a) Estes textos não são contos; b) Estão organizados sobre a forma de livro. O que stou aqui a colocar, então, é um livro. É assim que espero que me leiam.
P.s.: comentar anonimamente também não está com nada...

12:15 da tarde  
Blogger polegar said...

se calhar comentou anonimamente pq não tem blog. anyway.
esta parte do teu texto, acerca do cowboy, lembra-me Robert Kinkaid, o último dos cowboys de "as pontes de madison county". só que ele encontrou uma felicidade. de que abdicou o resto da vida. e morreu.

2:56 da tarde  
Blogger la machina said...

Agradecido pelos esclarecimentos. Espero ter sido também esclarecedor.
P.S.: O ponto final já foi colocado. Colocar aqui estes textos será revelá-lo. Espero que tenham paciência para ir comigo até ao fim. E que o prazer de ler vos assista.

9:26 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

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