Apologia da alienação sensorial, enquanto caminho:
“Para caminhar coloco uma perna à frente da outra e depois avanço essa que ficou para trás e assim sucessivamente; é o meu cérebro que dá ordens aos músculos, aos ossos, às cartilagens, ao sangue e ao oxigénio; sinto o chão sob os pés, através dos sapatos, as pedras, a areia, o alcatrão, a relva, a relva está molhada, sinto o couro dos sapatos aconchegarem-me os dedos, as meias, o elástico das meias a apertarem as pernas, a repuxarem os pêlos (mas com suavidade); sinto as cuecas, o elástico das cuecas a acentuar-me a cintura conjuntamente com o cinto das calças, o sexo acomodado, sinto o colarinho da camisa e os punhos e o leve movimento dos braços, sinto a brisa fria no rosto, no cabelo, nas mãos, a secar-me os lábios, digo à língua que mos humedeça e sinto-a, sinto o ardor nas faces da barba feita há pouco, sinto as chaves e o isqueiro no bolso das calças, sinto o nariz entupido (estou constipado), sinto o fumo do cigarro que estou a fumar a entrar-me nos pulmões, a sair-me pela boca, sinto o frio do Inverno que é, que me provoca desconforto, e o sol sem força a não contrabalançar; sinto, enfim, a harmonia do meu corpo em movimento e, mais que a pele desumana do meu blusão, a imensa toalha da minha própria pele, macia, sequiosa...”
Esta alucinação é muito lúcida. Este haxixe é muito bom. Não o quero. Quero sentir muito, mas sem ele.