O GUITARRISTA
Sou eu e a minha guitarra.
— Toca para nós.
— Seja. Seremos melhores depois. Pode ser uma canção nova?
A mesa está cheia de cerveja, de cinzeiros cheios de cigarros mortos de aborrecimento.
Pode ser tudo.
Toco.
A música é a invenção do silêncio.
— Tocarei mais e melhor por um prato de comida.
— Levem daqui estas garrafas vazias.
— Estes copos sujos.
— Tragam comida.
— Mais bebida.
— Toca para nós. Estamos tristes.
Maior é a minha tristeza.
Nasce-me dos sonhos.
Como é que eu poderei explicar?
Como é suave o verniz que cobre a madeira desta guitarra.
A minha guitarra, e eu.
— E depois de eu comer e tocar, quem é que cuidará da minha própria tristeza? Tocar-me-ão?
— Curas os outros e não te curas a ti?
É funda, a minha música: leva-me ao riso.
— Qualquer tirano me poderia mandar matar por isso, não era?
— Que sabemos nós?
— Não sei. Beberei muito, e que a noite se faça longa.

Toco.
Estas canções que sou.
Canto.
Começam a aprender comigo.
Cantamos todos agora.
Bebemos.
“Vem vindo um novo dia”, dizem.
Haverá trabalho de sol a sol na prisão. E depois, à noite, livres, estaremos outra vez em melancolia e aborrecimento.
Contem-me o que fazem uns com os outros na cama: farei também essa canção.
Contem-me do suor no rosto.
Contem-me dos sonhos felizes.
Contem-me dos olhares doces, das mãos nas mãos.
Contem-me das verdadeiras casas onde se pode viver.
Contem-me do céu que se vê das janelas, do cheiro forte do pão fresco pela manhã e da fruta a crescer nas árvores.
Contem-me com a vossa voz e os vossos olhos, como se eu fosse cego, vidente em transe.
Disso farei todos os dias novas canções.
Cantem comigo esta opulência discreta, e eu ficarei convosco um pouco mais, até que o sol nasça fora dos muros.
Agora, agrada-me esta cor do entardecer, este nojo à tristeza.
Agrada-me o vosso palácio. Parece-me seguro.
Escutem.
Sou eu e a minha guitarra.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

espero bem que sim.

7:32 da tarde  

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