O poeta era um covarde na terra sem heróis, lá para sul.
Um dia, o feiticeiro da tribo, que não gostava dele, envolveu-o numa teia mágica e disse-lhe que era chegado o tempo de ele entrar no mundo dos homens.
“Mas o tempo existe?”, riu-se o poeta, cheio de medo.
Todavia, até mesmo o chefe da tribo concordou com o feiticeiro.
Foram então para a falésia da Grande Canoa. Havia uma falha enorme na terra — um precipício — , e por cima dessa falha estenderam uma corda. De um lado ao outro, com esforço e sem ajuda alguma, teria o poeta de atravessar, para se fazer homem, segundo as tradições.
Despiu-se ele até ficar completamente nu. Depois cuspiu nas mãos e disse: “Vamos lá a isso”.
Agarrou-se à corda, começou a avançar por ela. Olhou para baixo, sentiu uma vertigem fabulosa; sabia que o mais fácil seria deixar-se cair para aquelas profundezas incríveis, aquele verde das plantas que a custo se fixavam entre os rochedos agrestes do abismo.
Não se deixou pensar muito em tais desvarios. Não acreditava nos homens: sabia que eles não acreditavam em si próprios. Mas queria aborrecer o feiticeiro, mostrar-lhe que o poder tinha muitas máscaras, a sabedoria muitos sabores. Avançou a pulso. Devagar. Cada vez mais perto. Suor frio. Mais perto. Calor.
Em luta consigo, não se apercebeu da traição do feiticeiro, que, com uma faca até aí oculta nas suas roupas rituais, cortou a corda.
De repente, sentiu-se a cair. E porque estava mesmo a cair, caiu, e morreu.
“Porque fizeste isso?”, perguntou o rei ao feiticeiro.
“Vi-o hesitar”, desculpou-se este, gaguejante.
“Agora não temos poeta”, lamentou-se o rei, que gostava de se rir — e, francamente, o feiticeiro não lhe estimulava muito o humor.
Mas tinham. O poeta, afinal, não morrera: o seu corpo, após a queda, transformara-se em carro, e estava agora numa oficina, a fazer revisão.
O seu espírito, esse, magoado com outros sofrimentos, clamava por vingança. Assombrou o sono do rei e do feiticeiro, os sonhos de todos os que sonhavam, a água do poço, o luar.
Quando o carro ficou bom, lá na oficina longínqua, fez a viagem de regresso. Ninguém o reconheceu, mas temeram-no, porque ele trazia consigo um papel que o declarava dono legítimo e único da terra onde a tribo erguera aldeia.
“Que vais fazer, senhor?”, perguntou-lhe o rei, com timbre de adulador.
O poeta respondeu-lhe: “Vou tirar-te todas as mulheres, cortar a língua e as mãos ao feiticeiro, expulsá-los a todos daqui; vou-vos falar de uma terra prometida; partirão para procurá-la; já tinhas ouvido história mais bela?”
Tudo aconteceu como o poeta disse. Mas ele não estava contente, porque não era a vingança que o satisfazia: só em generosidade era capaz de viver, e o sofrimento dos outros sofria-o ele também.
Dormiu muitas noites na praia, sozinho, rodeado de melancolia e música triste, a olhar as estrelas em todo o céu, a ouvir o mar.
Mais tarde ou mais cedo, acabaria por ir ao encontro de seu povo, para iluminar o castigo que lhe impusera: de facto, só ele sabia bem onde é que ficava a terra nova que lhes prometera.