A RAINHA LOUCA

Porque estimava muito em especial o tradutor sombrio que trazia consigo junto ao coração, a rainha louca pensara, um dia, que seria boa acção compensar, através dele, todos os tradutores do lado de lá das fronteiras, dar-lhes um mundo ideal para viverem em paz os seus mais íntimos momentos de descanso. Assim, decidiu contar-lhes a história de um deles.
Ele, ao tomar conhecimento das intenções da rainha, teve opinião diferente, e disse-lhe somente assim: “os tradutores não têm história”.
“Então conta-me tu uma história, para eu viver”, pediu a rainha. “Mas não recordes: inventa”.
“Talvez um dia”, afirmou ele. “Talvez um dia eu precise disso, ou me atreva, ou seja capaz”.
No entanto, ninguém é rei no mundo de outrém, e por isso, em segredo, já a rainha ensaiava os primeiros passos para a concretização da sua ideia. E ele, embora ignorasse tal facto, estava, fosse como fosse, em posição de compreender o desejo da rainha. Porque, para ela, ele era a obsessão que simultaneamente a atraía e lhe doía, e era lógico que quisesse fazer qualquer coisa de concreto em relação a essa ambiguidade, que, a não ser compreendida e digerida, acabaria por destruir a sua própria identidade.
A rainha louca tinha um escritório só para si, uma secretária em madeira sólida, ampla e activa. Ali lhe passavam pelas mãos papéis sobre os mais variados assuntos, e até mesmo papel em branco. E, às vezes, era aquilo: a caneta entre os dedos a pingar da gonorreia azul que lhe definia a existência, pintando palavras inesperadas em breves apontamentos incontroláveis. E a rainha observava, apenas.

“O tradutor isolou-se do mundo, deixou para trás os prazeres mundanos. Eu era o seu diabo, brincava com ele aos insultos. Perguntava-lhe, por exemplo:
— Quando é que te casas? Começas a atingir a maturidade suficiente para dares esse passo tão importante na vida de qualquer ser humano.
— Não penses nisso.
— Então com quem é que fazes amor?
— Comigo. Masturbo-me. Sou voyeur, narciso. Tenho a melhor colecção de pornografia do país, aliás.
— Já não sentes nada, não é?”
Etc.
E tudo acabava no mesmo instante. A rainha acendia um cigarro, levantava-se da sua cadeira macia e ia até à janela. Havia sol, um relvado, crianças ao longe aos pontapés a uma bola de borracha. Ele vivia mais longe ainda, muito mais, apesar da velocidade das máquinas modernas, e à rainha louca parecia-lhe que nunca deixaria de ser a boneca de porcelana na casa dos malucos. Era uma sensação que, com o tempo, se tinha tornado absolutamente insuportável.
No escritório havia um espelho. Ela erguia as saias e via-se por baixo. Depois apontava-se no peito e dizia-se, em voz alta, em silêncio: “a alegria, é aqui que me dói”. E ria-se. Estava mesmo a enlouquecer.
Entretanto, o tempo de trabalho ia andando, às vezes tão angustiadamente como uma roda de tortura — papéis para assinar, decisões a tomar. Chegava, enfim, a hora de retomar a verdade da vida, as ruas sempre as mesmas: a pessoalidade, como se poderia dizer.
“Ouve, escuta...” Ela a falar consigo própria, uma vez mais. Os carros a passar. A brisa. “Assim não vais longe”. O céu.
Vinha aí o fim-de-semana, poderia comprar um tradutor no quiosque do costume.
Uma merda. Não podia. E vinha também mais um pedaço de história, à margem da história.

“O tradutor aborrece-se, mas não boceja. É engraçado, curioso: não boceja nem pestaneja. De mim diz ele que sou a rainha louca. Estou apaixonada por ele. Não sei porquê, não tenho razões razoáveis para isso. Já lhe disse uma vez:
‘Vou escrever um livro para ti, a falar de ti e na tua língua. Gostaria que depois o traduzisses para mim’ ”.
Mas voltemos ao amor, aos seus porquês. A tudo o que não sei. Às vezes penso que é apenas por causa do seu olhar. Do seu mistério, guardado por trás das pupilas negras de carvão. Daquela sua maneira insolente de se sentar nos maples moles, também, talvez... Talvez, porque tudo nele é um desafio. Com ele eu aprendi como é difícil as pessoas comunicarem entre si. Mas eu quero comunicar, e ele é como um teste decisivo. Bom, é o que sinto.
A casa dele é um sonho, e eu penso: “estou a dormir; nada disto faz sentido”.

A rainha louca sabia, portanto, que estava a perder o seu tempo com o seu tradutor de eleição. Desejava libertar-se dele, mas, se possível, sem o perder. E isso não era possível. Daí o seu sofrimento. E se ela estava cansada de sofrer.
Existiria mesmo, aquele homem? Seria um homem?
Veio um novo livro para traduzir, precisamente na véspera de um fim-de-semana prolongado. Viajou para sul, a rainha, ao encontro do seu trabalhador-amor, e foi encontrá-lo a dormir. Porque é que tudo seria sempre tão fácil para ele?
Tudo menos o que ele queria, e ele não queria nada. Melhor: queria nada e queria viver.
Acordou-o. Disse-lhe:
— Vim apanhar sol. Trago também o último trabalho que quero que faças.
— Porquê o último? — quis saber ele, já desperto.
— Quero desligar-me de ti. De mim dizes que sou rainha, mas tu és o deus sanguinário de um egipto qualquer, e estás a alimentar-te de mim, e eu não quero ser mais o alimento que silencia essa fome. Vais ter de procurar outra vítima.
— Não.
— Não o quê?
— Não vou ter de procurar coisa alguma. Estou saciado, já tenho reservas para viver bem até à morte. Só me faltava desprender-me de ti, que és o meu único amor, mas não sabia como fazê-lo. Ainda bem que tiveste a coragem ou o discernimento bastantes para tomares a iniciativa. Gostaria, no entanto, de gozar estes últimos dias como se o que se passa fosse uma coisa boa. Depois, haverá milhares de coisas que vão perder importância, e era bom que isso não ficasse na memória de nenhum de nós como mais uma ferida.
O sol entrou de roldão pela janela grande, quando ele a abriu.
Encheu-lhe o corpo nu de brilho, de saúde, e a rainha olhou-o uma última vez, e depois desviou o olhar. Não, não ia ser como ele queria. Não iam ficar a pairar no tempo, na felicidade fictícia dos postais, na neblina solar que ele construíra como mundo só seu. Ela pressentia a realidade dele, mas não era capaz de a penetrar. E não ia ser agora que, como por magia, isso havia de acontecer. Teria o seu fim-de-semana doloroso noutro lugar.
Abriu a mala e poisou o livro a traduzir em cima da cama. Disse que se ia embora.
— Claro — disse ele. — Claro, não podia ser de outro modo, não é? Leva então esse livro, porque eu sei que já não serei capaz de traduzi-lo. Talvez tenha chegado, enfim, o tempo de eu escrever o meu próprio.
— Dizes isso por orgulho.
— E o que achas que me suporta a carne? Os ossos? Não: é sempre o orgulho, a consciência do que sou, aquela consciência que eu nunca soube transmitir a ninguém. Nunca ninguém me ouviu. Vê: esta casa é uma ilha. Seria esta a minha ambição maior, se tenho tido tantas outras oportunidades? Duvido. Mas agora sinto-me bem aqui. Aqui eu tenho uma dimensão real, porque é uma dimensão que criei, e que aceito. Tu chamas-lhe orgulho. Outros dirão crueldade, frieza, presunção. Falem então dos outros, e esqueçam-se de vocês próprios. Eu não. Já sabes que estou na frente de uma caravana, e que as caravanas acabam sempre por passar perante quem está sentado, a olhar. Mas eu sou ainda mais que isso. Sou a caravana a passar e o voyeur a olhar. E que vejo eu? Tudo. A minha caravana e a dos outros. Não receies por mim: já provei demasiado a insatisfação, e sei bem o que é a felicidade. Estou a falar assim, tanto, porque estou a despedir-me de ti, e há coisas que nunca mais terei a oportunidade de tas dizer. Se eu escrever um livro, prometes que o lês? Escreve-lo-ei a pensar em ti.
A rainha estava a fumar um cigarro. O fumo era áspero. Tossiu. Alguma coisa na garganta a magoava. Queria falar e não conseguia. A dor era cada vez mais incómoda. Ergueu-se da cama e caminhou de olhar baixo até ao terraço.
Ele saiu com ela. Era um ser tão bizarro que o próprio sofrimento lhe estava a dar gozo, ensinamentos. Tudo dependia, também, do tempero. E como sofrer até aos limites do insuportável perante aquelas especiarias todas — o céu mais azul do mundo, o sol a pairar no espaço, as histórias do mar ao longe?
Dançou ao redor da rainha, e ela chamou-lhe louco, louco, ele era louco, era isso.
Mas não era. As coisas não eram bem assim. Acontecia apenas que não havia, naquele momento, mais nada para dizer.
Estava ou não um Picasso numa das paredes da sala? A música que, a qualquer instante, poderia brotar do hi-fi, era ou não uma música verdadeira? Era ou não preciso um único gesto para pôr o carro a trabalhar, e sair dali para sempre?
Loucura, sim. Louco não.
Vai, vai, rainha; outros reinos, outros tronos me esperam. Tu já sabes qual é o meu alimento, mas não conheces o verdadeiro sabor da minha carne. Nunca me comeste.
Nem loucura, mas somente uma cólera imensa, misturada de alegria, aquilo que lhe saía do peito, de todo o coração apertado, como se tivesse tomado muita cocaína.
Ia continuar tradutor. Ia traduzir livros que ainda não estavam escritos. Ia...
Ela já não estava. Entrou em casa e ela não estava. Tinha levado o livro mas a marca dele ficara sobre a colcha branca.
Ela já não estava e ele chorou. Não chorou nem por si nem por ela: chorou porque também era capaz de sentir e de lamentar as perdas.
Depois tomou duche, vestiu-se e saiu para almoçar. Havia muita coisa a despertar-lhe o apetite.