CINEMA

Era manhã hipotética, na casa vazia. Estava um homem à janela, com uns binóculos, a vigiar o oceano. O outro usava chapéu e óculos de sol, fumava, falava, sempre a andar de um lado para o outro. Entrou uma mulher que disse: “estou com fome”. Nenhum dos homens lhe respondeu, embora lhes apetecesse dizer coisas, dizer mesmo, não seguir o guião, não ser personagem.
Ele entrou e colocou-se por trás das câmaras, mas afastado, ao lado da anotadora. Piscou-lhe um olho. Ela correspondeu. O filme tinha começado a ser rodado há duas semanas, com tudo a correr bem, mas era muito possível que acabasse por falhar, no conjunto final.
Estava ali porque fora ele que construíra o guião, baseado num romance que traduzira. Era um bom livro, mas talvez um mau filme. Ideias de realizador. Contudo, fazer o quê, se ele é que tinha o dinheiro? Mais um idiota com dinheiro.
Apesar do guião ser seu, sentia-se solidário com os actores: era preciso dizer coisas, outras coisas, sair daquela casa vazia. Pensou na sua própria casa, pensou: “será que me ando a esconder entre paredes ideais?”, e pensou, finalmente: “hão-de ter mais sorte, talvez, lá para diante, à página cinquenta”. Mas, entretanto, morria-se, e a culpa era dele. Parte da culpa, pelo menos.
Houve um intervalo nas filmagens. O realizador passou a fazer vento, atarefado, toupeira, técnico, e ele disse-lhe:
— Quero falar contigo.
— Agora não. Às quatro.
E desapareceu.
— Então, divertes-te? — disse ele à anotadora.
— Estava a ver que nunca mais aparecias. Vou tomar um café. Vens comigo? Tenho dez minutos.
Saíram da casa e encostaram-se ao balcão do bar móvel, instalado numa carrinha grande, pintada com cores vivas.
Pediram dois cafés.
— Andamos sempre a correr — disse ela. — Mas não é mau de todo. Já trabalhei com tipos piores.
— E o filme?
— Falta-lhe acção. Não é um horror, mas faltava-lhe isso. Respiração, movimento, colorido.
— É um horror mesmo, confessa.
— A montagem é que vai decidir. O jogo das câmaras está bom...
— E os actores?
— Vão indo. Profissionais e exigentes, como é preciso. E vaidosos, também. Embora tenham razão, em alguns aspectos.
— As palavras?
— As palavras, por exemplo. Tu já viste. Mas não só.
— Vi. Mas o cinema não é real, e há silêncios cheios de significado. Tudo depende também do que se faz com eles.
Silêncios iguais à inexistência de vento entre os pinheiros bravos, à volta da casa vazia, invadida temporariamente por homens e mulheres de papel, casa vazia sempre.
— Deves saber mais disso do que eu. Afinal, a literatura é muda.
— Nunca percebi muito de literatura. — Acendeu um cigarro. — E mais? O que é “as palavras mas não só”?
— Uma questão de maturidade, talvez. Como quando se confunde desejo de perfeição com acumulação de signos. O simbolismo demasiado denso torna-se uma espécie de nevoeiro, fica-se sem se perceber o que se vê, ou o que se quer.
O café não prestava, sabia a ratos mortos com trigo roxo. Ela bebeu-o, distraidamente, mas ele deixou-o ficar, somente provado.
— E tu? — perguntou ela.
— Eu? — Sorriu. — Eu sei o que é preciso fazer para que o silêncio resulte.
— Vai lá dentro e explica-lhes.
— É essa a minha intenção.
— E tu? — Ela a repetir-se, as sobrancelhas num ângulo irónico.
— Outra vez? — Um sorriso imitativo.
— Ainda não me respondeste.
— Vou indo, como vês: profissional, exigente e também vaidoso. — Encolheu os ombros. — Como falar do que não sei?
O intervalo tinha acabado, entretanto.
Era preciso regressar ao interior da casa, tentar preenchê-la da melhor forma possível, fazer o filme.
— Fico cá por fora mais um bocado — disse o voyeur.
— Até já — despediu-se a anotadora.
Na estrada, mais adiante, passou um homem de bicicleta, a pedalar devagar. O local era aprazível, a solidão propunha-se com tranquilidade. Via-se o mar, farrapos brancos de nuvens no azul de aguarela do céu, o odor arejado do ar. Até a canção que tocava no rádio do bar, estrangeira, era agradável: uma melodia simples e eficaz, bem dimensionada. “Viver para contar”, traduziu ele, automaticamente. “Uma tarde feliz para todos os que nos escutam, são três horas e cinco minutos e”, disse o locutor, por cima da música, cumprindo o seu dever.
Contornou a casa e desceu pelas dunas até à praia. Não havia ondas: a água enrolava-se em silêncio por baixo de si própria, longe de quaisquer olhares.
Sentou-se na areia, acendeu outro cigarro, deitou-se para trás e fechou os olhos. Gostava do sul, daquele sul quase desértico e pouco civilizado, onde dominavam as paisagens monótonas e grandiosas, serenamente refractárias a todos os dilemas humanos modernos, os diálogos, as personalidades, os negócios.
De súbito, encheu-o o lúcido vislumbre de que tinha o conhecimento de algo realmente importante: a consciência de que era possível saber que a vida humana não tinha sentido concreto nenhum, e mesmo assim sobreviver.
Pensou: “Esvaziar-me de significados não implica que me suicide. Pode-se perfeitamente viver na certeza da inutilidade. Pode-se construir para nada. Pode-se perder, mas não falhar: ser-se bom sem outro objectivo que esse de se ser bom. Pode-se fazer um filme sem diálogos, sem enredo, sem mensagem — e, apesar disso, esse filme ser bom, bem feito, demonstrar competência, sensibilidade e sabedoria”.
Fechou-se a circunferência dos seus pensamentos, o cigarro acabado, e o voyeur ergueu-se, até ficar de novo sentado, os olhos de novo abertos. Incompleto.
Um navio começou a passar ao longe, a triturar o horizonte com as suas grandes hélices de bronze. No leme, ia um homem com um metro e setenta de altura, e uma boina preta na cabeça. Pelas janelas da ponte via o mar abrir-se, para que o seu navio passasse. Navio seu, não se duvide; porque, quando um homem está no leme, o navio que vai a conduzir pertence-lhe: é um mundo a viajar na pele doutro, um poder, uma paz, uma filosofia.
Na biblioteca de bordo, o comandante — um brasileiro filho de alemães, loiro, olhos azuis, quarenta e quatro anos de vida já vividos — , após o almoço, folheou ao acaso algumas páginas do terceiro volume das obras completas de um pensador europeu do século dezanove, enquanto ia tomando um café e um brandy. A ré, apoiada na balaustrada, o olhar esquecido na esteira de espuma feita pelo navio, a médica de bordo fumava um cigarro americano. O homem do leme ligou o piloto automático e foi até à asa da ponte de bombordo, dar uma espreitadela a terra, com os binóculos negros e pesados do comandante. Viu um vulto humano no areal luminoso, pinheiros, e uma casa branca, minúscula, com telhado vermelho. Na casa, à janela, um outro vulto, aparentemente empunhando uns binóculos, parecia estar também a espreitá-lo. Mas parecer nem sempre é ser: de facto, tratava-se apenas do mau da fita a cumprir o seu papel, na rodagem de um filme.
Pensou que talvez um dia, num filme qualquer que não aquele, ou num livro, num qualquer futuro, ainda havia de contar as breves histórias de todos aqueles personagens sem nome que já conhecera, mundo fora, nas suas vagabundagens: o comandante fascista ou romântico, a médica de bordo feia, o homem do leme, a princesa dos subúrbios da grande cidade, os pequenos heróis, os jogadores a olho, as mulheres fatais.
Incompleto. Mas isso já sabia.
“Em arte, bem feito implica sempre a existência de uma mensagem. Em tudo, aliás”.
Estava dito. Ergueu-se e caminhou para as águas. Havia um livro em que um homem caminhava sobre elas.
Pura magia, os milagres. Apesar dos cintos anti-gravidade de alguma ficção mais fantástica: de certo modo, qualquer coisa semelhante a essa magia impossível do estalar de dedos — alegorias velhas em corpo moderno: dignidade, verdade, paixão. O estilo.
Deixou que o mar viesse ver-lhe os pés, os sapatos bem engraxados, a sua pequenez de homem solitário.
Bichos primitivos sob a areia movediça da praia, de todas as praias. Bichos a labutarem no escuro.
Gritou. Palavra nenhuma. Ninguém para ouvi-lo. Apenas a solidão dolorosa, a solidão indolor — e, ao lado, através, a toda a volta como o ar, aquela luz incendiada de uma clarividência maior, qualidade que as paisagens desertas tinham o condão e a força de lhe conceder: esvaziava-se-lhe o espírito, vozes imateriais murmuravam-lhe a simplicidade e a harmonia que a frenética vozearia de toda-a-gente sempre lhe recusara. Gritou. A paz...
Voltou costas e regressou à certeza do celulóide. Luz. Acção. Corta. Repete.
Dignidade, verdade, paixão. Acção. A ausência de som.
Escalou as bossas do areal como se estivesse a chegar à conclusão de uma longa viagem por terras estrangeiras.

A casa de papel reapareceu no horizonte dos pinheiros. Os nómadas tinham já desmontado as tendas. Agora era preciso percorrer mais vinte e cinco quilómetros, reacender as chamas artísticas eléctricas e electrónicas, registar mais meia hora de imagens para salvar trinta segundos.
Ofereceu boleia ao realizador. Falariam pelo caminho. A caravana levantou voo.
— Já pensaste em como tudo seria diferente se aqui houvesse elefantes? — observou ele.
— Para quê? Não chegam já os camelos?
— Não sabia que também pensavas assim.
— Nem eu.
Era preciso conduzir depressa, para flutuar sobre o asfalto descorado e esburacado. O mar desaparecera por completo. As casas começaram a nascer, a pouco e pouco, e em instantes viram-se às portas da cidade. Nenhuma autoridade local trouxe a chave dourada para as celebridades anónimas, e o voyeur disse:
— Tens de convencer os teus actores de que não estás a fazer um filme intelectual.
— Não estou?
— Não. Sabes bem que não. É um filme árido, uma tela em branco onde se vão pintar sentimentos, manifestações sensoriais. A intelectualidade estragaria tudo isso. Quando a actriz diz: “tenho fome”, basta apenas que se defina que fome é essa. Que fomes. Ela que não faça amor, que não coma nem converse com ninguém durante dois dias, e com certeza que há-de descobrir o perfeito equilíbrio para a sua imagem.
— Nenhum deles é religioso a esse ponto.
— E, todavia, têm deuses. Divindades que lhe fazem falta. Crenças.
— Afinal, o que é que tu querias? Qual é a tua ideia?
O silêncio avançou através do ruído das coisas e do calor, nas ruas estreitas, no ronco rouco dos motores. Havia edifícios com arbustos nos telhados, paredes em cimento amparadas por cartazes publicitários, figuras novas e velhas na película geral, onde combatiam, cada vez mais surdamente, o furor e a ferrugem.
— Eu li o livro — disse ele. — E tu?
— Eu li tudo.
— Claro. És o realizador — Fez uma pausa. — A questão não é o que eu quero, mas sim o que faz falta: encher o copo com água, dar-lhe uma tempestade... E depois, ir ver o mar.
— Um dos teus males, quando falas, é o de usares, às vezes, símbolos de mais.
— Às vezes? — Já mo tinham dito. Mas a manipulação dos símbolos permite-me conciliar melhor todas as realidades de que me apercebo. E, por enquanto, ainda não sei ser de outro modo.
A partir daqui, silenciaram. O trânsito estava espesso. Ultrapassaram, foram ultrapassados. Contornaram rotundas. Os semáforos acendiam-se para verde, avançava-se devagar. Chegaram, enfim, à outra casa. Tornaram a montar o acampamento, depressa, como se estivessem a participar numa corrida. Mas as pessoas estavam irmanadas pela boa disposição; viviam uma aventura, e isso fazia-as felizes.
Um halo de luz azul encheu, de súbito, o corredor. Cinza, vultos a passar. Ruídos, vozes, situações.
Desviou-se dos cenários a passar e saiu. Havia um café em frente, alguns mirones, a violência contida da hora de ponta. Sentou-se a uma mesa e pediu um café ao empregado. Estava junto ao vidro, como numa montra, manequim, a olhar a rua através dos olhos de vidro. Ligou o motor da sua máquina de filmar automática e deixou-a registar o que havia.
Mas era sempre, tudo o mesmo: as mesmas mulheres divorciadas, os mesmos miúdos de um liceu, os mesmos velhos bêbados, as mesmas sopeiras, os mesmos heróis solitários.
Introduziu um ensaio de guião na memória e esperou que a máquina conseguisse alcançá-lo.
“Não percebo nada disto”, disse a figura. “Só conheço uma verdade”.
Tinham discutido o medo, o desejo, os sentimentos. Nada se deixara agarrar. O morto-vivo crescia no écran, e o espectador colocava-se por trás da câmara, enquanto uma voz dizia: “continua assim, estás verdadeiramente assustador”. No enorme bar do estúdio 3, os vampiros tomavam bebidas tropicais ao lado de dois gladiadores, de uma starlette e de alguns cowboys. O espectador apercebeu-se então de todo o ridículo daquela situação: as brincadeiras dos adultos, os seus mitos, os seus negócios. Mas era verão, e ninguém tinha piedade de ninguém.
“Muitos mortos?”, comentou um dos cowboys para um dos vampiros.
A starlette apoiou os seios semi-desnudados sobre o balcão e pediu um copo de leite. Alguém se riu.
“Nós só bebemos sangue”, respondeu o vampiro ao cowboy perguntador. “Vocês é que são especialistas em mortes violentas”.
O morto-vivo chegou nesse momento do Taiti (estúdio 3, sala c), empestado de suor e maquilhagem.
Pediu uma coca-cola. Disse: “na Europa as coisas são bem diferentes”.
“Figurantes à sala b, cinco minutos”, anunciou uma voz imperativa, através dos altifalantes.
“Na Europa...”, recomeçou o morto-vivo.
“Vai-te lixar”, interrompeu-o um dos cowboys. “Aqui é o velho oeste, filho”.
Puxou do revólver, disparou-lhe dois tiros à queima-roupa e soprou o fumo do cano da arma, num gesto que se percebia ter sido minuciosamente estudado.
O morto-vivo bocejou. Acabou de beber a coca-cola, aproximou-se do cowboy que disparara, ergueu os braços lentamente, abriu a boca demente e fez: “buu”. Instintivamente, o cowboy recuou. O morto-vivo soltou uma gargalhada viva, e saiu.
As duas mulheres, na mesa do fundo, ainda jovens, olharam-no com uma certa intensidade, fazendo comentários inaudíveis, e o voyeur sentiu uma inesperada onda de desejo animal a percorrê-lo de alto a baixo.
Pagou o café, saiu, atravessou a rua por entre os carros parados e estacionados e reentrou na casa das filmagens.
Dominava de novo o peculiar silêncio de algo a acontecer, fora dos circuitos da normalidade citadina.
Por mais que a cidade fosse, ela própria, anormal.
Subiu as escadas que davam acesso ao primeiro andar, com degraus em madeira bafienta, abaulados, atingidos já pela inexorável velhice do uso.
A luminosidade azul tinha dado lugar a uma ambiência avermelhada, proibida, e começou a ouvir-se, cada vez com maior clareza, a voz paciente do realizador.
— ... o que eu quero dizer é isto: causas perdidas, talvez; falhadas, não.
Continuou a avançar, a sorrir. Aquelas palavras, fora ele que lhas dissera, ainda nem há uma hora.
Era bom ser-se compreendido, apesar de todas as artimanhas escondidas nos enredos.
O homem do chapéu deixara-o noutra cena. Agora ia rodar-se uma sugestão de amor. A mulher estava nua sob os lençóis e o cobertor, sobre a cama nua encostada a uma das paredes do quarto nu. Escutava o que o realizador dizia. Todos o escutavam, aliás: era dele o dinheiro que fazia mover aquela engrenagem, e por isso tornava-se importante perceber o que ele pretendia, ao certo.
— O que eu pretendo — prosseguiu ele, a propósito — é obter o máximo de resultados com o mínimo de meios. O vosso trabalho de actores torna-se assim duplamente responsável e significativo, a partir do momento em que vocês são, simultaneamente, o sujeito, o predicado e os complementos directos, indirectos e circunstanciais da acção. Nesta cena, por exemplo, tu — apontou a actriz — és a imagem humana do ambiente que te rodeia. Não é o teu belo corpo que deve sobressair, mas sim a atitude de despojamento emocional que lhe possas dar. É a beleza ao abandono, e não uma sessão de fotografias eróticas para uma qualquer playboy. A nudez, aqui, é miserável. Não quero apelos aos sentidos. Quero paisagem e interrogação. — Silenciou. Concluiu: — Vamos filmar.
“E, todavia, ela está nua porque a nudez faz sempre apelo aos sentidos”, pensou ele, com um encolher de ombros íntimo. Era sempre tão curto o período de compreensão entre os seres, tão vulnerável.
Filmaram, violaram a película virgem. Os actores pensaram que um instante deles ia durar, inalterável. O realizador pensou no sentido oculto das coisas. O director de fotografia pediu os últimos ajustes na iluminação do quarto, para a cena derradeira. As câmaras quiseram encontrar nos rostos coisas que neles não havia.
Depois fumaram cigarros, beberam vinho. Combinaram um jantar num restaurante típico, num dos bairros boémios da cidade.
Lembrou-se do espectador, da ignorância do espectador, e de como era essa ignorância, a par de um conhecimento mais ou menos imperfeito da vida, que iria fazer com que o filme vivesse.
Entretanto, anoiteceu.