EGIPTO

«Era dia do deus com cabeça de cão, dia dado à divindade omnipresente, e por isso igual a tantos outros: que já tinham sido, que iam ser.
Através das névoas quentes e densas que pairavam por todo o imenso areal, a oeste, palhetas de oiro falso ardiam sem chama, ricas de nada; e nessa cegueira luminosa, ou longe da vista, apenas, resistindo contra os fantasmas vivos de todas as ilusões e de todos os sofrimentos, florescia o verde sem tempo certo dos oásis, portas perdidas à entrada de um paraíso perdido.
Pela mesma perspectiva — sem um olhar sequer — , mas a norte, e, de certo modo, a toda a volta, um outro deserto, o mar, país insondável e maior, enrolava-se com indiferença sobre si próprio, formando um mundo à parte: um mundo enraizado na aventura, e prenhe de desejos trágicos, extremos mas unidos em equilíbrio, a meio caminho entre a perdição — o esquecimento puro, a água, a areia — e a felicidade — a areia, a água, a memória clara, o pensamento límpido.
Até a vida, adaptada às circunstâncias, aos excessos da paisagem, preferia ali manter-se oculta, na indolência suavemente sangrenta do velho vale sagrado, guardada ou esquecida das incríveis exuberâncias que constituíam o seu atributo fundamental, quando os lugares que habitava eram de maior juventude, de mais tenra virgindade. Só no cenário do céu, dormindo, se cruzavam as aves negras e embalsamadas de um outro deus, também cabeça da mesma família de animais intemporais.
Mais abaixo, a rainha, filha possível do sol e dessas aves bruxas, dormia ainda, tal como elas, nua e descoberta, no pesado e largo leito de luxo que um pretendente já rejeitado lhe oferecera, num capricho de homem intencionado. Deitara-se ao fim da noite, dolorosamente inquieta com coisas que não sabia, e só há pouco lograra conciliar o sono sempre difícil. Agora, no seu rosto enfim em repouso, espelhava-se o colorido sereno de quem sonha viagem para ilhas encantadas, a revelação da imortalidade, ou a presença segura de um terno amante.
O olhar do deus vigilante poisou infinitamente sobre os construtores da eternidade e, por momentos, o vento balofo do deserto agitou a cabeleira dos canaviais junto ao rio, que ia pouco mais que seco, naquela época do ano. Lendas de uma língua estrangeira cantavam, num sussurro quase inaudível, ao redor das fogueiras nocturnas, que se havia de acoitar ali o berço em verga de um menino mágico, profeta escolhido de uma religiosidade rival, futuro libertador do povo sempre escravo. Era essa a esperança, sem dúvida».

Bocejou duas vezes seguidas, e imaginou os grandes crocodilos ancestrais, a baterem com as longas e pacientes caudas fósseis na lama vermelha, caída para as margens do rio das misteriosas e longínquas terras do sul — países de bruma e não-fronteira, onde dançavam, em cidades só sonhadas, pequenos povos secretos, embriagados de selva e liberdade.

«Os sacerdotes, tão crianças com aquelas que, descalças, saltitavam em silêncio pelas ruelas estreitas entre as casas de barro, levantando poeira, os sacerdotes é que eram apreciadores de coisas assim, da realidade complexa e sem sentido. A eles pertencia, desde tempos imemoriais, a minuciosa mas insonsa tarefa de organizar os calendários cíclicos, os rituais religiosos e uma boa parte de todas as outras aparências da monotonia. Talvez por isso, por causa do tédio sem sabor, e por serem, no fundo, apenas homens, crescidos a partir das crianças que todos os homens são, entretinham-se e entusiasmavam-se em diálogos sem fim, nos difíceis intervalos do seu labor sonolento, forjando novos enredos, mistérios, tesouros, poderes. Desconheciam ainda que o mundo, o deles e todos os outros, começara já a andar ao contrário».

“Ao contrário de nada, como de costume”, pensou, com mais um bocejo circunstancial.

«Entretanto, o suor dos homens escravizados pingava na pedra nua, boca sempre sequiosa. Pingava, fervia, evaporava-se. E mais carregamentos de pedra em bruto chegavam todos os dias ao vale, para o mesmo suplício incompreensível: construir a eternidade, a casa da morte viva, e olhar os deuses nos olhos, transcender a matéria humana.
O deus com cabeça de cão acariciou maquinalmente a capa dura do seu livro negro, e sorriu, daquele modo como só um deus sabe fazê-lo.
No rio, os barcos pobres dos pescadores encalhavam à toa, pela lama morta. A custo se libertavam, mas para logo prosseguirem a sua busca nervosa, em águas mais profundas. Alcançados esses lugares, os homens chamavam então o escasso peixe à sua fome. Mas este, que já lhes conhecia as redes e os truques, ria-se deles, ou deixava-se morrer, simplesmente, também esfomeado.
E os deuses? Que se passava com eles, de facto? Nunca estavam contentes, aliviados. Por sua vontade, pelos seus caprichos demasiado humanos, vinham a público os sacerdotes com rostos falsos, duros e frios como máscaras mortuárias, ou vigiavam o povo em silêncio, das sombrias janelas e varandas dos palácios e dos templos.
E, nos bastidores, davam conselhos sensatos e ponderadas recomendações à rainha, que era então muito jovem, provavelmente louca, mas divina».

“Querem construir casas de deuses em todas as casas dos homens, para poderem entrar nelas livremente”, constatou, sem assombro. “Malditos sacerdotes loucos”.
Deu uma volta na cama e, por casualidade, viu as horas que eram, no despertador eléctrico. Viu e pensou que estava a fazer-se tarde para nada. Mas, de qualquer modo, já não seria capaz de readormecer: o calor estival, com toda a clareza de uma razão evidente, crescia agora para ser grande, poderoso e devorador.
E tinha os olhos abertos. Era isso: os olhos abertos. Tirou o lençol de cima e viu-se nu. Nu. Nada mais. Ergueu-se, passeou ao acaso pelo quarto, tomou duche e acabou por se ir sentar a meio da sala de plástico e algodão, onde dominavam os tons claros, a tingirem-se de sol, as cortinas pesadas perante a brisa fraca, e música a tocar. Acendeu um cigarro e aguardou. Mas continuava a dormir, a sonhar o futuro. Fechou os olhos.

«O rei da Pérsia entrou com o seu séquito, instalou-se devagar no trono dourado e, com um gesto, autorizou que se começassem os trabalhos. Logo de início, era preciso mandar matar alguns homens (inimigos indesejáveis), planear a nova capital do reino (a gloriosa), e declarar ou não declarar guerra aberta aos sábios das torres astronómicas.
O séquito pigarreou. O rei era estúpido. Tanto que talvez viesse a casar-se com a rainha estrangeira, irmã do príncipe selvagem, aquela de quem todas as vozes do oriente diziam ter sido atacada pela loucura mais perigosa: a paixão por um deus.
O rei disse: “estou cansado”. Escravas vieram e lavaram-lhe os pés. Infinda ou brusca era a caminhada que transportava ao poder. Mas, como sempre, tudo dependia do estado do tempo, das contradições do estado, dos desígnios sagrados, dos pés sujos ou lavados do rei. E era para isso que serviam as escravas lavadeiras: para indicarem ao poder uma direcção que ele pudesse seguir, sem sofrimentos, sem medos.
Contudo, segundo o rei, havia dias em que nada apetecia. Nem mesmo dar ordens. “O rei está aborrecido”, dizia-se então. E fazia-se silêncio profundo, procuravam-se novos divertimentos e jogos e invenções para distrair o soberano moribundo e absorto, perdido no meio de tantos luxos entediados.
Nas torres, os sábios vigiavam as estrelas. O rei temia-os. A Pérsia é um reino pequeno, mas complicado: porque dorme pouco, ou mal, um rei pode sempre guerrear com os seus sábios, condenar inocentes, ser caprichoso — e não chegar, nunca, a um resultado satisfatório.
As estrelas brilhavam longínquas. Os sábios vinham, vagarosos, e diziam: “não vemos os deuses”. Seria isso um sinal? Ver estrelas, não ver deuses...
“E Sócrates?”, perguntava o mais sábio dos sábios, com um sorriso ambíguo. “E Platão?”
“Quem é Sócrates?”, interrogava o rei, aprisionado no árduo labirinto dos seus pensamentos dolorosamente soturnos. “Quem é Platão?”
“Não sabemos”, respondia o mais sábio dos sábios, com novo sorriso, ainda mais obscuro que o primeiro. “Mas é preciso não parar de perguntar. O céu está cheio de números, riscado por vozes. Até já ouvimos dizer que o mundo começou a andar ao contrário”.
“Quem disse?”, sobressaltava-se o rei. E assim sucessivamente: vinham os sábios com as suas complicações, o séquito do rei pigarreava, as escravas lavavam-lhe os pés, e o rei pensava, em segredo, que talvez não fosse mesmo má ideia casar com a rainha louca. Juntos, poderiam tentar um império.
Mas, boa ou má ideia, a verdade é que já não era segredo, esse desejo do rei: toda a gente o conhecia — todos os campos e montanhas, o deserto e todos os peixes no mar — , porque as escravas liam-lhe o íntimo na água perfumada que usavam para lhe lavar os pés, do mesmo modo como se lê um livro, página a página, a esgotar as palavras.
A água falava, de facto: enchia-se de partículas flutuantes, murmúrios, sujidades... E as escravas, donas da sabedoria mais rica, faziam canções simples e verdadeiras, com todos esses indícios — as canções que o povo cantava, nas festas e no suor».

Deu por si a sorrir. Não se tinha limpo, após o duche, e agora os seus pés molhados estavam inscritos na alcatifa felpuda e branca. Assim, era fácil pensar no rei da Pérsia. Até mesmo compreendê-lo. E lamentá-lo.
Ergueu-se e saiu para o terraço e viu o mar. O mar azul, o mar imenso.
Quem iria matar hoje? Num filme, num livro, num sonho, também isso seria fácil. Fácil. Fácil. Fácil: repetia dentro da cabeça uma palavra até ela perder por completo o sentido, até ser uma mera expressão fonética. Era este um dos seus jogos preferidos.

Era tradutor. De livros. De ficção. Decidira-se por tal trabalho talvez porque, desde sempre, sentia uma insuperável dificuldade em lidar coerentemente com realidades reais. E porque, olhando o mundo, o via deformado, imperfeito na perfeição, sujo por símbolos vazios. Depois de uma fase inicial de indecisões, passara a traduzir apenas os livros que mais lhe agradavam. Analisava os estilos, e sempre que podia polia-os, corrigia-lhes as asperezas. Não se achava traidor, como dizia o provérbio da sua profissão; “tradutor, conciliador” seria, com mais propriedade, o seu lema. No fundo, longe ia já o tempo dos assassínios.
Mandarim, pois, no mundo dos outros, nunca pensara, no entanto, em fixar, por palavras, o seu próprio mundo.
O que ele queria era não envelhecer fisicamente, e isso não podia.
Escrever, correr riscos...
Não, nada disso. Importante já era ter chegado, apesar do tempo, a um dos lugares que mais desejara. Tinha o carro, a casa, e tinha-se. O que lhe faltava, afinal?


Imaginou que telefonava, que dizia: “sou eu, o rapaz verde”. Quem o escutava, do outro lado, era a rainha louca, pela qual ele tinha um fraco perfeitamente admissível: eram muito parecidos, em muitas coisas. Juntos, riam-se da pretensões do rei da Pérsia (visita da casa, mas ilustre desprezado), riam-se dos sábios, das estrelas, dos concílios dos deuses, do curso da história. Era uma amizade valiosa, aquela que ele cultivava com a rainha: um sentimento denso, talvez maior que o próprio amor. Porque o amor não era o fim mais elevado que a existência pretendia atingir, não era, não podia ser. Essa uma das suas crenças, e que ele andava a aprender a compartilhar. Sim, juntos podiam falar do amor sem receio.
Dormia, digamos.
Ela chamava-o, então, chamando-o “sonâmbulo querido”, e ajudava-o, fazia-lhe perguntas súbitas, estabelecia ligações entre ele e o mundo dos mundos. E ele, por sua vez, convidava-a, em dias inesperados, para a levar a passear por mundos que existiam realmente, não por obrigação. Na verdade, não constituíam surpresa um para o outro: surpreendente, excitante, novidade, isso vinha da infinidade de tudo o que havia; eles eram apenas a segurança, o equilíbrio, a estabilidade. Mas apenas já era muito.

A imaginar que telefonava, o telefone tocou. Levantou o auscultador e atendeu. Disse: “sim?”.
Escutou.
“Porque é que dizes sempre sim?”, perguntou a outra voz.
“Porque sei que és tu”, respondeu ele. “Mais ninguém conhece o meu número de telefone”.
“É um privilégio, realmente”, comentou ela, a rainha louca.
“Não dizes mais nada?”
Disse. Mas era trabalho, afinal. Uma proposta com ar de diferença: quinhentas páginas à lupa, em três meses. Um americano atravessado de latim escolar. “Os americanos pensam pouco: é o melhor que têm”. Mas, mesmo assim, não lhe ia sobrar o tempo: quinhentas páginas miudinhas estavam para lá de qualquer brincadeira. América ou não. Latina e tal ou não.
“Nem no meu mês preferido me deixam em paz”, disse ele. “Mas manda-me isso, para eu ver”.
“Vais gostar”.
“É possível”, afirmou o voyeur, despreocupadamente. “Vens visitar-me? A estação corre boa”.
“Talvez no próximo fim-de-semana”.
“Então até à volta do correio. Espero-te”.
Desligaram-se. Logo quando estavam a ir tão bem.
É que, ultimamente, instalara-se entre eles uma estranheza má, ainda sem nome: a rainha começara a crescer mais depressa, a ficar ambiciosa. Ou talvez não fosse nada disso. Era preciso falar, para perceber. Mas os sentimentos permaneciam os mesmos: uma riqueza inigualável, uma ternura toda feita de conhecimento e de verdade.
Olhou para o lado e viu outra vez o deus com cabeça de cão, translúcido, enorme.
“Ainda aí estás?”, pensou ele. “Terás o que mereces”.
Mas o deus não o via. Era um deus cego, demasiado poderoso para os defeitos que mostrava. Escondido no palácio do medo. Louco, também ele? Provavelmente. Deus cão dos homens. Perigoso.

Não lhe apetecia pensar mais. Vestiu-se.
Saiu com os óculos escuros postos no olhar. Uma nuvem solitária, minúscula, encobriu o sol, por momentos, e ele respirou fundo. Já estava outra vez num banho de suor, mas não se importou. O suor inútil.
Conduziu algum tempo frente ao mar. Depois, desviou para o interior, onde o mar era outro, verde, feito de árvores. Não havia ninguém. Ninguém. Uma picada ao lado do coração doeu-lhe de repente.
Tentou traduzir.
O rei da Pérsia sorriu-lhe, malicioso, mas ele não lhe ligou. Havia coisas piores.